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Sulfato Ferroso

Por: Ademiro Alves (Sacolinha)

Sulfato Ferroso

 

Despertou do cochilo limpando a saliva que escorria pelo canto da boca. Lembrou que estava num trem. Teve uma grande surpresa ao perceber que tudo estava escuro e só havia ele no vagão.

Levantou e olhou para o outro carro do trem através da janela interna. Não viu ninguém, tudo escuro. Olhou para fora e só aí percebeu que havia dormido demais.

Sem relógio no pulso não sabia que horas eram:

- É noite ou madrugada?

Tentou abrir a porta, mas não obteve sucesso, as portas dos trens de hoje não são mais como os trens de antigamente; fácil de abrir.

Soltou uma interrogação para os seus orixás escondidos, talvez, na escuridão:

- Mas será possível?

Tentou outras portas, mas todas estavam com pressão, muito mais fortes que ele. Seus grossos braços e sua sabedoria de capoeirista não dariam jeito. “O jeito mesmo é esperar amanhecer e o trem voltar a andar”. Pensou consigo.

Procurando se localizar olhou novamente para fora e não viu nada além dos muros que cercavam a linha do trem.

Sentou-se outra vez, tentando pegar no sono e não enlouquecer esperando o trem voltar a andar. De olhos fechados começou a pensar na sua volta para a Bahia.

Será que muita coisa havia mudado?

Saíra de lá com 25 anos de idade e nunca mais voltara. Hoje, aos 38, encontra-se iludido com a vida.

Casou duas vezes, mas não teve sorte, ainda bem que não tivera filhos, não consegue sustentar nem a ele. Também, melhor assim, pelo menos está livre para seguir o caminho que bem entender. E apesar dos tropeções ainda é feliz. Tem lá suas qualidades; nunca roubou e nem matou, pelo contrário, já salvou muitas vidas nas associações em que passou dando aula de capoeira. Na infância, Sulfato Ferroso que morava nas ruas de Salvador engraxando sapatos, conheceu a capoeira através das rodas que se formavam na areia das praias. Às vezes estava engraxando um par de sapatos de um cliente, e se distraía ao ver no longe, adultos e jovens de calças brancas e berimbaus nas mãos indo formar roda para jogar capoeira. Sulfato Ferroso corria para ver. Esquecia-se do par de sapatos que estava a engraxar. Tudo isso para sentir o axé que arrepiava o seu corpo toda vez que presenciava uma roda dessas; os rostos, as gingas, os sons dos berimbaus, as cantigas, os gritos e os golpes.

Foi assim que conheceu o Mestre Tororó, com quem aprendeu os verdadeiros ensinamentos da capoeira e o dendê clássico dos passos e golpes da cultura popular.

Foi neste tempo que ganhou o apelido de Sulfato Ferroso. Lembra o dia em que Mestre Tororó, sem mais nem menos, chegou na roda chamando-o desse nome, e assim ficou. Todos começaram a chamá-lo de Sulfato Ferroso.

Em São Paulo fez quase de tudo no que se refere a trabalho; pintor, ajudante de pedreiro, panfleteiro, cobrador de lotação, empacotador de compras de supermercado, padeiro, vendedor de porta em porta, e mais uma dezena de profissão que não exigia experiência.

Só não evoluiu porque se negou a acompanhar o mundo moderno:

- Celular, computador, emeio, saite, internet. Tudo besteira. Onde é que fica o olho no olho em tudo isso?

Acreditava mesmo é na capoeira. Só não sabia que em São Paulo ela não é tão valorizada quanto na Bahia. Lembrou o dia em que anunciou a um amigo que viria para a grande metrópole:

- João Peitudo, vou mimbora pra Sum Paulo ensinar capoeira. Levantar uma casa e criar uma família por lá.

Por aqui passou por vários lugares ensinando capoeira, mas quase não ganhava dinheiro, na maioria das vezes era por amor. Adorava ver aquela criança sorrindo por ter aprendido um primeiro golpe.

Ficava aborrecido quando recebia convites de ong´s que movimentavam muita grana e diziam que não tinham dinheiro:

- Poxa vida mestre Sulfato Ferroso, é pela molecada da periferia, tudo gente humilde e carente.

Logo cedia ao convite, seu coração era mole demais pra dizer não diante de uma fala dessas. O ruim mesmo era quando o aluguel atrasava.

- É, nessas horas não tem ninguém de ong e nem de entidade pra pagar as minhas contas, muito menos essa tal de humildade e carência.

Há muito tempo estava pensando em voltar. Era livre, não tinha nenhum dependente. É só chegar em Salvador, pular no mato e levantar um barraco. Melhor que ficar nessa cidade ingrata e mal agradecida. Ficava mais nervoso nos momentos em que morou sozinho e tinha que limpar a casa. A Bahia não produzia tanta poeira assim.

A sobrevivência por aqui judiou de Sulfato Ferroso. Preocupação lhe dava olheiras. Até barriga aqui ele criou:

- Imagine só, um capoeirista feito eu cum barriga sobrando?...

Talvez podia ser a idade, pensou. Teve muitas desilusões por aqui, inclusive entrou em crise num momento de conflito interno. Ficou com aquela história de copo cheio e copo vazio na cabeça. Se lembra até que nessa época trabalhava no centro da cidade e pegava o trem todos os dias, bem cedo. Estava naquela mesmice há tanto tempo que já sabia a quantidade exata dos degraus da escada que dava para o outro lado da plataforma. 

- Por que será que na Bahia eu me sentia tão bem, hein?

Devia ser o sol, o ar, o tempo, as pessoas, os passos descalços nas ruas de terras, o ritual de Oxum na casa de Mãe Terta.

- Ô axé que acalma a alma.

Aqui em São Paulo as pessoas vivem apressadas, correndo atrás do seu, não pensam nos outros, cada um no seu mundinho.

- Será que eu é que vivo assim? Será que tem dois mundos?

Talvez sim, Sulfato Ferroso sempre quis viver sossegado, sem estresse, sem preocupação.

O melhor mesmo é voltar pra sua Bahia. Lá sim dá pra viver sossegado. O custo de vida é suportável.

E além do mais não tem nada melhor do que jogar capoeira na areia da praia e depois tomar água de coco com uma baiana do lado. Nada de se preocupar.

Deitou no chão do trem, usou a sacola que trazia como travesseiro, e dormiu. Quando acordou o trem estava parado numa estação onde embarcavam sonolentos trabalhadores. O relógio da plataforma marcava quatro e meia da manhã.

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